terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Mestres do Anime: Makoto Shinkai

otakismomakotoshinkaiO herdeiro de Miyazaki?
Quando Hayao Miyazaki anunciou sua retirada da indústria dos animes em 2013, a mídia japonesa usou o termo 速報 para proclamar a aposentadoria do fundador do Studio Ghibli. O entendimento do valor de Hayao dentro da cultura japonesa passa pela compreensão destes ideogramas, usualmente reservados para chamar a atenção pública à chegada de terremotos. O aviso de que Miyazaki não produziria mais longas-metragens caiu no Japão como um desastre natural. No momento em que um mestre deixa o trono vago, a primeira coisa que se busca é o sucessor. Um dos nomes mais citados como prováveis herdeiros desta condição é o jovem Makoto Shinkai. Nesse post, pretendo falar um pouco sobre ele de forma geral, suas predileções estéticas e características técnicas, para então introduzir seus filhotes, um a um, e concluir: será ele o cara?
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Quem é Makoto Shinkai?
Todas as atenções se voltam ao deleite visual proporcionado pela animação que ele produz, cuja narrativa costuma ser sempre uma experiência guiada majoritariamente pelos olhos. Os diálogos em seus filmes, OVAs e curtas não costumam trazer nada de especial, a força está na destreza ímpar em manejar luzes e sombras. As paisagens aquareladas onde suas histórias acontecem nascem de esboços coloridos, padrão de trabalho incomum no nível inicial de storyboard (garranchos em preto e branco). A exemplo de mangakás como Inio Asano, ele gosta de fotografar paisagens reais do Japão para captar com detalhes o ambiente circundante e reproduzi-los em suas criações. Esmero técnico e sensibilidade estética – características quase sempre presentes na produção cinematográfica japonesa – são suas marcas registradas, acessíveis mesmo aos olhares mais leigos. A reprodução animada de cenários reais parece esconder a intenção de se mostrar mais autêntica do que a própria realidade, tamanha a profusão de cores e jogos de luzes. Personagens esteticamente genéricos, por vezes indistinguíveis, contrastam com paisagens exuberantes. É verdade que isto lhe rende algumas críticas, como a afirmação de que em certos momentos sua arte se torna kitsch devido aos excessos.
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Obsessão seria sua terceira característica. Shinkai é obcecado por certos assuntos, por alguns simbolismos e por determinadas construções visuais. Há trens em TODAS as suas animações, geralmente em movimento e interrompendo o caminho dos personagens. A linha férrea com frequência fechada para pedestres obstrui a passagem e cega o horizonte. O transcorrer do tempo e as mudanças psicológicas são expressas pelo ciclo de transição das estações. Pingos de chuva e poças d’água marcam presença constante, assim como lançamentos espaciais, céus estrelados e personagens interessados em assuntos astronômicos. Ligações telefônicas, marcas e referências ao universo do consumo, pássaros voando (muitas vezes no sentido contrário ao do personagem) e mãos apoiadas na porta do trem completam a lista de fixações imagéticas do japonês. Além disso, ele gosta de finalizar suas animações com uma música – ela geralmente ajuda a amarrar o texto, elementos essenciais são trabalhados já nos créditos -, e de vez em quando opta por trabalhar com ambientes beligerantes, onde fala sobre a condição humana em ambientes desumanizados.
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Mais do que um padrão visual, toda a obra do Makoto está amarrada a um fio condutor, isto é, de uma forma ou de outra, todos os seus títulos parecem contar a mesma história, sempre relacionada a algum tipo de relacionamento interpessoal marcado pela distância e pela ausência. Suas criações costumam ter um clima depressivo, uma atmosfera de renúncia. Ele geralmente trabalha com o ciclo do luto, onde há a insatisfação por uma perda, seguida da aceitação do mundo tal qual ele se apresenta, mas não sem o pesar de precisar abrir mão de coisas que são tão caras aos personagens. Muitas vezes este ciclo (que nem sempre se completa, o que torna Hoshi no Koe uma animação mais soturna) é acompanhado de um sentimento de inadequação, ora espacial (insatisfação com o lugar em que se está), ora temporal (flerte com a nostalgia). Isso o distancia muito dos títulos frequentemente positivos do Miyazaki, que gostava de energizar a juventude com uma abordagem mais otimista. Espírito auto-suficiente, Shinkai declara que sua obra toda é a criação daquilo que ele gostaria de assistir para se animar ou consolar.
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Creio ter passado por cima das características que saltam aos olhos no Makoto Shinkai. Abaixo, pretendo empregar uma análise que buscará pontos de convergência e divergência destes padrões em cada um das suas animações, e, claro, apontar as fragilidades de sua obra. Na conclusão, trarei a ideia de que, goste você ou não, Shinkai ajudou a mudar a indústria do anime em dois momentos e por isso merece um pouco de atenção. No mínimo.
Curtas: Tooi Sekai / Kanojo to Kanojo no Neko
“Ei, o mundo é bonito, né? Mas há algo que não posso aceitar… Que algum dia você vai encontrar sua verdadeira metade.”
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Shinkai começou sua carreira como game designer. Paralelamente ao seu trabalho na indústria dos jogos, o japonês começou a produzir curtas independentes durante seus momentos de folga, fazendo da internet sua aliada na divulgação. A primeira delas foi Tooi Sekai (Other Worlds / 遠い世界)de 1997, que você pode assistir em inglês clicando aqui  A produção ainda é precária, mas em seus menos de dois minutos, nota-se uma antecipação de temas que serão recorrentes na sua obra futura, como a separação de um casal.
Kanojo to Kanojo no Neko (She and Her Cat / 彼女と彼女の猫) de 1999 já apresenta uma evolução no cenário independente (em inglês clicando aqui). Durante seus cinco minutos, que cobrem o período de um ano, testemunhamos o desenvolvimento da relação entre um gato e sua dona, pelo ponto de vista do gato. Diferente do romance “Neko” do escritor Natsume Soseki, onde a perspectiva do gato a respeito do seu dono é acida e irônica (Shinkai estudou literatura japonesa na universidade), o bichano de Makoto é guiado pela inocência e se apaixona pela criadora, fechando os olhos para suas oportunidades.
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“A neve absorve todo o som do mundo, mas apenas o som do seu trem alcança minhas orelhas ouriçadas. Eu, e talvez ela também, provavelmente gostamos desse mundo”
Hoshi no Koe (2002)
 (Voices of a Distant Star / ほしのこえ)
“Quanto mais longe a Mikako ia da Terra, mais tempo as mensagens demoravam a chegar. E se eu… acabar me tornando alguém que apenas espera pelas mensagens dela?”
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Shinkai se enamorou com a linguagem cinematográfica criando cenas animadas para videogames. A necessidade sentida de contar uma história sua conflitava com a rotina de trabalho. Isso o fez largar o emprego e passar oito meses trabalhando sozinho em casa no projeto de Hoshi no Koe. Seus únicos companheiros de trabalho eram um Macintosh e sua esposa. O trabalho foi homérico, ele criou um OVA de 25 minutos SOZINHO em um computador pessoal. Para te dar noção do feito, tenha em mente que cada episódio de um anime produzido no Japão custa em média 100 mil dólares e envolve mais de uma dezena de profissionais. A proeza projetou o nome de Shinkai e o DVD de HnK vendeu mais de 100 mil unidades.
“Mesmo que eu tenha escrito o roteiro, desenhado os quadros e dublado as falas em Hoshi no Koe, eu não me sentia como um diretor, eu era apenas um cara na minha, fazendo algo para o meu próprio prazer. Então eu estranhei quando as pessoas se dirigiam a mim como diretor” (Makoto Shinkai)
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Hoshi no Koe apresenta uma realidade futurista onde a humanidade já havia iniciado a colonização do Sistema Solar e tinha a capacidade de explorar dobras espaciais. Tamanho avanço tecnológico colocou o Homem em rota de colisão com uma espécie alienígena chamada Tarsian, contra quem trava duelos interplanetários fazendo uso dos famigerados mechas. Para combatê-los, as Nações Unidas convocou uma série de pilotos, entre os quais figura a garota Mikako Nagamine.
O motor do plot é a troca de mensagens de texto entre Mikako e seu amigo Noboru Terao, que ficou na Terra. Quanto maiores as distâncias intergalácticas, maiores as dificuldades. A comunicação ficava limitada pela velocidade da luz e de meses passou a levar anos para alcançar seu destino. Sem ignorar o risco da mensagem sequer chegar. Enquanto Noboru seguia sua vida provinciana no Japão, Mikako se encontrava presa em uma cápsula do tempo, condenada a ser uma eterna adolescente pela falta de interação com os seus semelhantes (como Shinkai ficou solitários oito meses em seu apartamento só trocando mensagens com a esposa). Ambos, no entanto, amarrados um ao outro.
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O OVA é talvez a obra mais pessimista do autor. Seu final é ligeiramente aberto, mas dá amplas margens para uma interpretação pouco feliz. Um cartão de visitas e tanto, seja no aspecto técnico, seja no artístico. Suficiente para chamar a atenção da indústria do anime. A partir de agora Shinkai seria um profissional contratado, com verba e equipe.
Kumo no Mukou, Yakusoku no Basho (2004)
(雲のむこう、約束の場所 / The Place Promised in Our Early Days)
“Nos últimos 25 anos, a torre se tornou parte da paisagem do dia a dia, e ela simboliza muitas coisas. Nação. Guerra. Desespero. E até admiração. A maneira dela ser interpretada muda entre as gerações, mas uma constante é que todos a vêem como um símbolo de algo além dos seus alcances. Algo que não pode ser mudado. Enquanto eles acharem isso, esse mundo provavelmente não mudará”
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Este é o primeiro produto de concepção comercial do Shinkai. No título temos uma versão alternativa da História do pós-guerra. A exemplo da Coreia, o Japão havia sido seccionado em duas partes, divisão pela qual a ilha de Hokkaido passou a ser chamar Ezo e ficou sob controle da União (uma óbvia referência ao bloco soviético), enquanto o resto se manteve ao lado americano sob a denominação Aliança. O militarizado espaço da União construiu uma torre absurdamente alta que poderia ser vista a olhos nus mesmo de Tóquio. Ninguém sabia ao certo sua função, mas a desconfiança de seu sentido militar era certa.
O roteiro gira em torno de dois garotos, Hiroki Fujisawa e Takuya Shirakawa, ambos interessados pela mesma menina, Sayuri Sawatari, e empregados na indústria bélica da Aliança. O sonho dos dois era construir um avião caseiro para mirar com os próprios olhos a torre de perto (novamente, há paralelos com a produção caseira de animação do Makoto). Eles fazem uma promessa de irem juntos ao monolítico monumento dentro do espaço aéreo da União.
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Aqui há um forte discurso científico e a presença de teorias da física quântica. Se em Hoshi no Koe falamos de dobras espaciais simbolizando distâncias, aqui estamos falando de universos paralelos. Pessoalmente, não sou o maior fã deste título, mas os fãs do Shinkai costumam gostar. Não que eu veja grandes problemas, apenas não entrei na história. A meu ver sua maturidade chega com a obra seguinte:
Byousoku 5 centimeters (2007)
(5 Centímetros por Segundo / 秒速5センチメートル)
“- Ei, vai fazer os exames?
- Sim, para a Universidade de Tóquio.
- Tóquio… Entendo. Pensei que seria o que faria.
- Por quê?
- De alguma forma sempre soube que você iria a algum lugar distante”
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5cm/s é a velocidade com que a flor de cerejeira cai, e nomeia o ponto mais alto da carreira do Shinkai. Esta animação de 1h é dividida em três atos. No primeiro, ‘Flor de Cerejeira’, acompanhamos a amizade construída entre os toquiotas Takaki Tono e Akari Shinohara. Ela é apartada quando Akari se muda com a família para Tochigi e intensificada quando Takaki fixa residência no sul do Japão, em Kagoshima. O primeiro terço da animação focaliza no reencontro entre os dois após longa viagem e na sensação de que algo nunca mais seria o mesmo. O segundo arco, ‘Cosmonauta’, se preocupa com a vida de Takaki em Kagoshima e insere uma nova personagem, Kanae Sumida. O terceiro e último, ‘5cm/s’, conclui a história anos depois, mas não entrarei em detalhes para não estragar a experiência.
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Este é o título onde aquelas características enumeradas no início do texto melhor encontram execução. A insatisfação com a atual situação (Akari seguia vendo a previsão do tempo de Tóquio mesmo morando em outra província); o fluxo do tempo caracterizado pela troca de estações; o diálogo sempre comprometido pela passagem de um trem, por uma carta não entregue ou ligações telefônicas nunca completadas; e a corrida espacial usada como metáfora para os personagens: quando uma revista folheada entrega a manchete “Finalmente achou seu caminho além do Sistema Solar”, pode-se entender claramente quem é a sonda e quem era o Sol.
“Quando comecei a escrever mensagens que nunca enviei?”
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Primeiro sucesso internacional do diretor, a obra foi licenciada em mais de 30 países. Pela primeira vez aparece com nitidez a riqueza visual anteriormente citada. Como descreveu o Crítico Nippon no blog Elfen Lied Brasil,  ele faz “a câmera filmar sempre planos abertos, salientando o isolamento dos personagens”. Uma boa história, bem contada e tecnicamente diferenciada, uma união rara de forma e conteúdo. Foi feliz também na escolha musical que encerra o título, “One more time, One more chance”, que Masayoshi Yamasaki compôs em homenagem à namorada falecida no terremoto de Kobe em 1995. Caso exista um interesse no processo técnico do Shinkai, recomendo assistir ao primeiro ato no formato storyboard clicando aqui.
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Curiosamente sua história mais famosa antecipa a sua pior criação…
Hoshi Wo O Kodomo (2011)
(Children Who Chase Lost Voices / 星を追う子ども)
“- E assim, sua esposa morreu. Devastado pela tristeza, Izanagi decidiu viajar para a terra de Yomi, muito abaixo da terra, para buscar do mundo dos mortos sua falecida esposa, Izanami. Ao chegar lá ele finalmente encontrou sua esposa e ela lhe disse: ‘eu já me tornei moradora do mundo dos mortos’”
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Finalmente um longa metragem de duas horas. O início promete uma experiência espetacular. Logo de cara o espectador se depara com belíssimas imagens naturais. Uma câmera fixa na residência da protagonista acompanha, em segundos, a mudança dos horários do dia e das estações. Da noite primaveril ao ardor de um dia ensolarado de verão. Paranóicos detalhes com cores, troca de folhagens e trabalhos de luz – mesmo na incidência de uma lâmpada no piso de madeira – podem ser definidos como Scenery Porn. Infelizmente, daí pra frente a coisa desanda e este filme se torna a grande bomba na carreira do Shinkai.
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Ele abandona o tema do cotidiano e abraça o mundo fantasioso, numa tentativa de se aproximar (ou de homenagear) os trabalhos de estúdios como Ghibli e Disney. A menina Asuna e seu professor Morisaki decidem entrar no mundo dos mortos para buscar alguém que lhes é caro, numa óbvia reconstrução de vários mitos humanos, como o de Orpheu (Grécia) e de Izanagi-Izanami (Japão). O desenvolvimento, porém, é terrível. É rico em referências, mas capenga em execução. Muitos inclusive o acusam de plagiar o Miyazaki, mas não acho que seja o caso, até porque as referências soam óbvias demais para um oportunista. É apenas uma homenagem mal feita.
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O roteiro foi concebido na Inglaterra no breve período em que ele morou lá por pressão dos seus produtores. O filme tem muitos clichês. Personagens nada carismáticos apresentam comportamento esquizofrênico. Tanto quanto o roteiro, que parece sair do nada para desaguar em lugar nenhum. A tentativa era de criar algo menos japonês e falar uma língua mais universal, por isso mesmo a adoção de mitos que dialogam com diferentes culturas. No entanto o Shinkai é japonês até o osso, e creio que seu forte está menos em criar mundos fantásticos e mais em adicionar um pouco de poesia ao nosso mundo… mundano.
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Não gostei também do final escancarado, típico das produções Disneyficadas, que não deixam qualquer margem para um olhar interpretativo (relaxa, não tem spoiler aqui). O que ele apenas sugere com sutileza na última cena de 5cm/s (um sorriso que diz tudo sem afirmar nada), aqui ele te joga na cara literalmente. Ok, era uma produção comercial que custou muito dinheiro e levou 5 anos de trabalho, ele apenas jogou o jogo da indústria. E o resultado não ficou tão bacana.
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Dareka no Manazashi (2013)
(Someone’s Gaze /だれかのまなざし)
“Parece que a Aa-chan é velha demais para apreciar uma refeição com seus pais”
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Após levar muita paulada da crítica especializada, Shinkai retornou ano passado em grande estilo com esse curta de sete minutos. Se destaca um ganho de maturidade em dois aspectos. Primeiro no visual, ele mantém seu estilo, mas está um pouco mais econômico, entende que em certos momentos menos é mais. Em termos de narrativa, ele abandona os relacionamentos amorosos de adolescentes e descortina uma sensível história entre pais e filha. Ele continua fiel ao seu fio condutor – relacionamentos e distância -, mas apresenta um novo olhar sobre o tema. Você pode assistir na íntegra, em inglês, clicando aqui. (COLOCA ISSO EM HD!!)
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O conto, encomendado por uma empresa de empreendimentos imobiliários, demonstra como as atribulações do dia a dia podem desgastar os afetos. Alexandre Nagado, pesquisador de cultura pop japonesa que escreve no blogSushi Pop, fez uma interessante observação: “normalmente, filmes publicitários de projetos residenciais mostram famílias felizes e idealizadas. Este mostra uma família que poderia ser a de qualquer um, com qualidades e defeitos, altos e baixos”. De modo curioso, Shinkai achou seu caminho de volta para casa numa peça publicitária de uma incorporadora.
Kotonoha no Niwa (2013)
(The Garden of Words /言の葉の庭)
“Honestamente, há apenas duas coisas que eu sei com certeza. Um: ela deve pensar que um garoto de quinze anos como eu não passa de uma criança. Dois: fazer sapatos é a única coisa que pode me levar para longe daqui.”
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O relacionamento amoroso volta no título mais recente da criação ‘Shinkaiana’, mas dessa vez envolvendo um adolescente de 15 anos, Takao Akizuki, cujo sonho é ser um designer  de sapatos, e uma mulher misteriosa, certamente mais velha, mas esquiva em todas as outras informações. Takao é o símbolo da nova juventude japonesa, hesitante em relação ao método escolar da era industrial, com sonhos de criar um negócio que lhe dê prazer e seja menos estressante (o lado não-radical do herbivorismo japonês). Em dias de chuva ele não suporta pegar o metrô para ir à escola, então ele vai a um parque em Shinjuku para desenhar sapatos nesse oasis verde em meio à selva de pedra da capital japonesa. Espírito livre, ele contraria o senso comum e se sente melhor em dias chuvosos. O Sol – a Deusa Amaterasu que deu origem ao povo japonês e sua tradição, segundo a mitologia – lhe passa a ideia de caminho ditado por outrem, não necessariamente o seu. Dias ensolarados apenas não lhe dizem respeito.
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Em meio à época de chuvas no Japão (junho), ele passa a ir quase diariamente ao parque, onde sempre encontra uma mulher que também mata o seu trabalho, não para desenhar, mas para beber cerveja e comer chocolate. Algo se desenvolve entre os dois tendo como  plano de fundo a chuva, que segundo o Shinkai é um personagem do filme, mesmo não tendo alma (em termos visuais, é minha obra favorita dele).
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Makoto defende que essa é a obra mais incompreendida no Ocidente. Isso porque todo o filme foi criado sob o conceito de amor. Mas não o amor que conhecemos por aqui, e os japoneses descrevem como Ai (愛), mas sim o amor escrito com o ideograma Koi (恋), que estaria mais relacionado a um sentimento de tristeza e desejo na solidão, uma necessidade física de afeto. Tanto Ai quantoKoi são traduzidos como amor, mas há sutilezas nas entrelinhas do idioma japonês que os diferenciam e os fazem ser aplicados em momentos diferentes (e o Japonês é a língua do discurso não dito, das sutilezas, do subentendido). Sinceramente, mesmo pesquisando eu não entendi direito a diferença, me peguei ‘lost in translation’, aceitei que é uma obra japonesa feita para o público japonês e azar o meu se posso apenas subaproveitá-la enquanto não sou fluente na língua.
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Por outro lado, uma coisa é clara. Os sapatos que ele desenha são os ‘passos’ que usará para construir seu futuro, caminho, farão seguir em frente apesar dos pesares. É a representação simbólica da mobilidade, do eterno fluxo, da inexorável impermanência, noções filosóficas caras ao pensamento japonês, originárias do budismo à moda chinesa. Tudo passa tudo sempre passará…
Ok, mas por onde começar?
Se você tem a intenção de assistir toda a obra do Shinkai, recomendo que faça como eu e siga a ordem cronológica de lançamento para entender como as coisas evoluíram. Se você quer ver apenas o que vale a pena, recomendo esta ordem:Dareka no Monozashi, 5cm/s, Hoshi no Koe, Kotonoha no Niwa. Eu não sou um grande fã de Kumo no Mukou e não gosto de Hoshi Wo o Kodomo, apesar de visualmente lindo. Veja se quiser. Os curtas independentes você pode assistir já após a leitura do texto. A única condição é: assista na máxima resolução possível. Se for para assistir em MP4 é melhor nem começar. Não faz sentido assistir Shinkai sem essa disposição.
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Considerações finais
Makoto Shinkai é uma montanha russa. Oscila entre o notável e o descartável. Costuma reunir fãs fervorosos e detratores raivosos. É indiscutível sua excelência técnica, bem como sua mesmice. Makoto me parece um exímio executor que tinha uma boa história para contar, e a remodelou de várias formas em diferentes títulos. Precisará se reinventar e se afirmar de modo mais assertivo como criador de narrativas se não quiser perecer como a eterna promessa da animação japonesa. Fãs mais exaltados costumam valorizar demais a beleza visual e às vezes ignoram fraquezas evidentes no resto do processo de criação.
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Por outro lado, ele carrega o peso das expectativas nas costas. Obras iniciais boas e a sombra de Miyazaki são um fardo pesado demais para um iniciante. Pessoas tentam, injustamente, demolir suas criações para demolir as comparações com um mestre da animação mundial. Não estar no nível do Miyazaki não é um demérito, na verdade é uma condição normal. Não gostar, considerá-lo superestimado e abaixo do nível do Hayao é compreensível (e eu concordo); achar que por conta disso o trabalho inteiro dele é de se jogar no lixo é um exagero dos críticos. Seus filmes estão trazendo uma mensagem importante para um povo vitimado pelos desastres naturais, como os de Fukushima em 2011: o desespero adolescente de Hoshi no Koe cedeu espaço à aceitação da impermanência dos títulos mais recentes.
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Todo mundo precisa reconhecer: ele arregaça as mangas e dá a cara à tapa. Shinkai escreve, anima, dirige, dubla, concentra várias atividades da criação nas próprias mãos e faz acontecer. Quando acerta colhe os louros, mas quando peca, assina o erro. Isso é admirável em um profissional. Sem ignorar o espírito empreendedor de abandonar o emprego para produzir animação independente (num país onde os animadores profissionais têm condições de trabalho precárias).
                Por tudo isso, Shinkai marcou a indústria do anime em dois momentos. Primeiro, ele mostrou que era possível criar conteúdo CG pessoal ainda nos anos 90, alterando a percepção dos profissionais da área. Quem diz isso é Yutaka Kamada da Doga: “eu também estava convencido que isto marcou a consolidação da animação pessoal como um genuíno meio de expressão“. Uma vez contratado, Shinkai demonstrou, com seu know-how adquirido no mundo dos jogos, todas as possibilidades que a computação gráfica poderia trazer para a indústria da animação japonesa, que naquela época ainda prezava por um modelo de animação analógico ou misto. Em outras palavras, ele ajudou a inovar a narrativa no cenário independente, e a técnica no cenário profissional. Não estamos falando de qualquer um!
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Resta saber se ele será capaz de se livrar deste cordão umbilical e dar a guinada em uma carreira de diretor capaz de trabalhar com temas diversos, ou se, como pensam os mais céticos, será apenas mais um. Uma coisa é certa. Ele pode não ser um gigante, mas está sentado nos ombros de um. Se você gosta de Shinkai, agradeça ao Miyazaki e lamente sua ausência. Mas siga em frente, pois como diz Shinkai em todas as suas obras, o show deve continuar, não importa quão grande é a perda.

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