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Desde a primeira vez em que vi usarem robôs gigantes, monstros gigantes e Guillermo del Toro numa mesma sentença, eu ainda estava decepcionado por saber que o cineasta não estava mais trabalhando em sua adaptação de “Nas Montanhas da Loucura”, conto do autor pulp americano H.P. Lovecraft. Na época, eu não sabia que o cancelamento do projeto tinha decepcionado del Toro ainda mais do que a mim. Mas se, como dizem, dá para tirar algo bom de qualquer tragédia, esse ponto positivo ganhou o título de “Círculo de Fogo”.
Guillermo del Toro é um diretor de referências, mas em seus filmes elas são tratadas com mais cuidado, não são jogadas na cara do espectador e nem mencionadas diretamente. Elas estão sempre ali durante a obra, mas sempre na forma de inspirações visuais ou até filosóficas, você as encontra nas entrelinhas e as absorve no mesmo ritmo que faz com o resto do conteúdo do filme, e esse é o grande trunfo dele como cineasta. Ao mesmo tempo, del Toro gosta de espremer essas referências e tirar delas gêneros e propostas diferentes. “Labirinto do Fauno” é um conto infantil disfarçado pela camada de fantasia sombria pela linguagem do filme – mas ainda assim, todas as características de uma fábula infantil ainda estão ali.

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Por isso mesmo ele era o diretor mais indicado para filmar o roteiro escrito por Travis Beacham que, entre os scripts de mais destaque, teve o lamentável remake de “Fúria de Titãs”. Mas não se deixe enganar, o passado pode condenar as pessoas, só que a vida é feita de oportunidades para elas se redimirem disso. “Pacific Rim” foi a redenção de Beacham. E uma ode a toda uma geração.
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Celebração a um gênero
Eu, assim como muitos de vocês que estão lendo esse texto e tantas outras pessoas, cresci assistindo aos heróis japoneses e seus robôs gigantes enfrentando monstros tão colossais quanto cujo único objetivo é acabar com a raça humana para então tomar posse de nosso planeta e transformá-lo no quintal deles. E esse é basicamente o plot do filme, quando você para pra pensar (o que eu acabei de fazer e ter uma epifania). “Círculo de Fogo” poderia ser resumido em uma grandiosa atualização dos “Changeman”, mas vai muito além disso. Ele pode ser uma homenagem aos monstros e robôs gigantes, mas também é uma história sobre como o passado das pessoas é capaz de ter poder sobre elas.
A introdução do filme é perfeita nessa conexão, temos toda a parte de robôs e monstros e o aspecto humano harmonizados. O protagonista e parte do elenco de apoio são introduzidos sem maiores delongas após uma breve explicação de todo o contexto que o mundo vive em 2020. Monstros gigantes começaram a sair de uma fenda que fica no fundo do Oceano Pacífico e, como se não tivessem nada melhor para fazer, começaram a tocar o terror pela Terra atacando cidades e acabando com milhares de vidas. A saída da humanidade para quando nossas forças militares não eram suficientes? Responder na mesma moeda de escalas absurdas: construímos robôs com mais de 50 metros de altura em tempo recorde com uma tecnologia que não possuíamos até então e fomos lá limpar nosso quintal das ervas daninha com jeito de peixe e que nos queriam muito, muito mal.
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Em meio a isso tudo temos a tecnologia empregada para se conseguir fazer essas monstruosidades metálicas funcionarem. É aí que as referências começam a dar o ar da graça. E elas não se limitam apenas aos tokusatsus, mas também a toda uma cultura que foi alimentada em torno dos robôs. A necessidade dos pilotos criarem um laço psíquico com a máquina vem direto de algumas das fases de “Gundam” e de “Evangelion”. Este último, aliás, é o que mais parece ter inspirado del Toro e Beacham que também procuraram tornar as relações e rivalidades entre os próprios pilotos importantes para a sincronização de homem e máquina enquanto enfrentam monstros grotescos gigantescos que parecem vir de lugar nenhum.
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Além de robôs e monstros
Mas não deixe a impressão de roupagem adolescente que os mechas transmitem te enganar, “Círculo de Fogo” é um filme bastante pretensioso para o que se propõe. O tom de humor em algumas cenas funciona como quebra no clima ou um descanso da ação desenfreada que por vezes toma conta do longa, ele funciona, arranca boas risadas e em alguns momentos faz questão de testar os limites da sua suspensão de descrença. Mas as críticas continuam lá, na forma de lobby contra os robôs e a favor de uma saída mais barata, e até um mercado negro surgido das carcaças dos monstros. É engraçado, mas o filme também é uma história sobre a capacidade de sobreviver e se adaptar da humanidade. Somos atacados por essas coisas em uma frequência cada vez menor e mesmo assim continuamos lá, criando novas formas de sobreviver e seguimos com nossas rotinas como se nada tivesse acontecido.
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Mais que isso, tiramos proveito da situação para conseguir algum benefício dela, e com sucesso. E, mesmo assim, com uma ameaça maior do que qualquer outra e com a vida em constante risco, continuamos sendo nossos piores inimigos porque a natureza humana é nos proteger do que quer que tente nos prejudicar, mas nunca conseguir nos proteger de nós mesmos. Essa é a parte bonita de filmes como esses, ainda que estejamos fazendo um esforço para nos autodestruir, sempre existirão os heróis para evitar isso.
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Eu demorei um tempo digerindo “Círculo de Fogo”. O filme tem muita informação, inclusive nas cenas de luta entre robôs e monstros. Mas mesmo assim o longa não é de forma nenhuma confuso, pelo contrário, vai direto ao ponto em boa parte dos momentos e mesmo os momentos mais densos são aliviados pelos próprios personagens, e pelos atores que tiveram quase que em sua totalidade atuações de alto nível.
Quando se assiste ao filme, você entende por que ele foi um fracasso de público em sua estreia nos Estados Unidos. Não é para qualquer público e precisa de um grau considerável de familiaridade com o gênero para se interessar por ele. Traduzindo: você precisa ser um maluco por robôs para se interessar pela premissa do filme só com base nos trailers. Mas, acredite, não vai se decepcionar. Infelizmente Guillermo del Toro ainda não recebeu o reconhecimento merecido do grande público, mas “Círculo de Fogo” é a prova de que qualquer elogio ao diretor é merecido. O filme pode acabar não chamando muito a atenção das pessoas pelos temas e a impressão meio adolescente que passa, mas é – de longe – um dos melhores do ano.
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“Círculo de Fogo” em 2D, 3D e IMAX (conselho: assista em IMAX).