Não grite até que te batam.
“Ninfomaníaca” (“Nymphomaniac”) surgiu surpreendendo em diversos aspectos, em uma história cheia de erotismo e – porque não? – sacanagem, misturada com divagações intelectuais e análises à primeira vista absurdas, que vão de matemática a religião. Agora, com “Ninfomaníaca – Volume 2”, a história se completa.
É difícil dar uma nota separada para este “Volume 2”, uma vez que, teoricamente, ele é parte da mesma experiência. Mas felizmente, ainda que esta segunda parte provavelmente agradará menos que a primeira por uma série de motivos, a qualidade não é um deles. E convenhamos, o fim de história é fantástico, doa a quem doer.
Obviamente, o filme é uma sequência. Então se você não assistiu o “Volume 1”, não recomendo que se arrisque nas linhas abaixo com o risco de encontrar vários spoilers. Quer ler a crítica da primeira parte? Clique aqui.
Um aviso importante: Este é um filme com censura 18 anos. Seu tema principal é o sexo, que aparece explicitamente em cena. Assim, este texto também vai tocar em alguns assuntos adultos, e ainda que as imagens abaixo não sejam explícitas, elas tem conotação sexual. Recomendo que não continue lendo se for menor de 18 anos ou caso seja facilmente ofendido(a) por assuntos relativos a sexo. E se você não se ofendeu com o primeiro filme, não é garantia que este segundo volume não vá te chocar.
Joe (Charlotte Gainsbourg), acolhida por Seligman (Stellan Skarsgård) prossegue em seu relato de sua vida de ninfomania como prova de que não é uma pessoa boa. Como prometido, são nos capítulos finais que suas decisões mais moralmente questionáveis ocorrem. Prosseguindo pela sua vida adulta, as aventuras de Joe se tornam cada vez mais intensas conforme sua dificuldade de lidar com o prazer e com sua condição se tornam incontroláveis, contribuindo com sua ruína pessoal.
Lars von Trier gosta de temas fortes. Depois de explorar a sexualidade abertamente na primeira obra, este segmento fala de um lado mais “errado” e sombrio do sexo e das relações humanas. E com certeza, é difícil não se incomodar.
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Na primeira vez, o incômodo era outro. Afinal o sexo, fosse ele moralmente ou fisicamente perturbador para alguns, ainda assim existia dentro de uma zona de segurança. Poderíamos estar falando de um comportamento sexual desviado de normas sociais, excessivo, descontrolado, desrespeitoso, mas ainda era algo que a maior parte de nós poderia se relacionar, ao menos em certo nível.
Aqui, o sexo chega em seu ponto mais baixo. Se antes a regra era “esqueça o amor”, aqui estamos mais na linha do “não grite”. Desta vez, tudo é tão “errado” que dificilmente a platéia se excita. Ou ainda, se isso acontecer, há um teor de culpa e imoralidade que acompanha os personagens nas cenas e se transfere para o público.
Para começar, aqui exploram-se diferentes concepções de sexualidade. Saindo das relações estritamente tradicionais do Volume I, o filme tem tempo de explorar outros temas, preferências e orientações. Fala-se da assexualidade – orientação daqueles que não experienciam atração sexual e/ou não tem interesse na prática sexual -, bem como homo e bissexualidade. E convenhamos, como foi visto nos últimos tempos, isso já basta para muitos se incomodarem. Mas na verdade tudo vai mais além.
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Explorando o sadomasoquismo, vemos uma pequena coleção de personagens que tira o prazer em causar ou receber sofrimento físico. K (Jamie Bell), um dos personagens secundários mais interessantes da trama, ensina Joe a encontrar prazer na violência. E suas cenas, em que supostamente não há nenhum sexo “real”, são paradoxalmente as mais violentas e as mais sexuais. Queremos olhar para longe da tela enquanto vemos feridas de chicotes, dor e sofrimento que parecem nos afetar, mas ao mesmo tempo o que mais incomoda é vermos os personagens gostarem, aceitarem e buscarem isso.
Até mesmo a pedofilia entra nas temáticas, com um segmento extremamente perturbador. Não, você não verá crianças sendo abusadas, mas acredite, o que temos em tela já é impactante o suficiente. De todo modo, este ponto do relato de Joe leva uma das discussões mais estranhas e interessantes, em que fala-se mais abertamente do que nunca sobre a repulsa social frente a um tabu.
No fim das contas, todas as relações que vemos em tela tem algum aspecto desviado. Se não estamos falando de práticas violentas, estamos falando da completa falta de confiança, respeito, ou até mesmo de ciúmes e desprezo. Joe não tinha amor verdadeiro na primeira parte, e agora suas chances não melhoram muito, ainda que se esforce. Além de K, vemos o desenvolvimento de seu relacionamento com Jerôme (Shia LaBeouf / Michael Pas) e com a jovem P (Mia Goth), e os resultados nem sempre são agradáveis.
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Com uma carga emocional mais pesada, esta segunda parte aposta em cenas mais longas e menos interrupções. Perdemos a frequência dos recursos narrativos do primeiro volume, mas em troca temos uma parte mais intensa da história, aproveitando ainda mais as atuações do excelente elenco.
Por duas vezes, a temática da violência e da expectativa da violência se repetem, uma vez com Joe como alvo, depois como perpetradora. Cenas como esta acompanham repetidamente a percepção do próprio público e também condicionam para que passemos a “esperar a dor”. Lars von Trier ousa com segmentos de suspense, que por vezes se cumprem, por vezes não.
Não espere que o ângulo mais pesado retire todo o humor negro da obra. Ainda que menos frequente, ele continua firme e forte, seja com as discussões entre Seligman e Joe (ela começa a perder a paciência com suas análises) ou mesmo no situacional absurdo (como um encontro frustrado de Joe).
As digressões temáticas ainda estão aqui, e exploram novamente alguns assuntos da primeira parte. Além de um capítulo inteiro combinando (novamente) matemática e religião – desta vez, fala-se do preciosismo e dos métodos da Paixão de Cristo como um paralelo ao sadomasoquismo, bem como outros pontos -, passamos por escaladores, James Bond, e uma complexa discussões sobre sociedade, racismo e linguagem. Muitas conclusões e argumentos incomodam e fazem pensar, e garanto que mesmo depois de sair do cinema você terá ao menos um ângulo diferente para pensar sobre certos assuntos.
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Seligman, como juiz da história de Joe, continua a perdoar tudo. Tudo para ele é lógico e explicável. Tudo pode ser perdoado se as motivações estavam certas. Direta ou indiretamente, isso adiciona um sub-tema ao filme que já se iniciava na primeira parte: a aceitação. Toda prática sexual totalmente consensual, a partir da visão de Seligman, é mostrada como aceitável. Não se julga que alguém faça muito sexo, nem que o faça com o mesmo gênero e muito menos os detalhes que isso possa envolver. Se ninguém é prejudicado ou ferido (contra a própria vontade), está tudo bem.
Nesse ponto, uma temática feminista surge sorrateiramente, culminando em um monólogo. Afinal, o conto de Joe seria muito mais aceitável se ela fosse um homem. Mas não, no nosso mundo sua ninfomania é um tabu que deve ser combatido. A certo ponto, Joe se depara com outras como ela, mas o termo que utilizam para minimizar sua condição é o “vício por sexo”, em oposição à “ninfomania”. Com sua revolta habitual, Joe não aprecia os panos quentes sobre o tema, mas a discussão deixa muito o que pensar. O mérito do sexo objetificado, consensual ou não, também não foge à discussão, em parte para a supresa dos próprio protagonistas.
As cenas finais nos mostram um final catártico, nos deixando de olhos arregalados e pensamentos confusos conforme refletimos sobre as consequências do que acabamos de ver. Acredite, boa parte do longa deixará seus olhos arregalados em uma expressão de choque. Ainda assim, o filme é recomendadíssimo a qualquer um que goste de entender mais sobre a condição humana, em especial as piores partes. E não, desta vez dificilmente você vai conseguir curtir a sacanagem.
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Fonte:PoP