O dinheiro nunca é o suficiente.
Quando ligamos a televisão ou abrimos o jornal e surge a notícia de um escândalo milionário de desvio de dinheiro, de trapaças na bolsa ou qualquer outro método de enriquecimento ilegal, logicamente ficamos furiosos. E quem não ficaria? Esses criminosos agem de má-fé e enriquecem às nossas custas, certo?
Mas às vezes vem aquele pensamento: “E se esse dinheiro fosse meu? O que eu faria com essa bolada?”, e por um instante, esquecemos um pouco tudo que era errado, e que havia nos deixado furiosos alguns momentos antes.
Nós podemos não gostar de desonestidade, mas é difícil não nos interessarmos nos grandes golpes. O diretor Martin Scorsese sabe muito bem disso, e nos surpreende com a história fascinante dos golpes, da ascensão e queda de Jordan Belfort em “O Lobo de Wall Street” (“The Wolf of Wall Street”).
Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio) é um aspirante a corretor de títulos da bolsa que entra no mercado no pior momento possível – a Segunda-Feira Negra de 19 de outubro de 1987. Com uma grande queda no mercado, sem emprego, ele descobre que seu talento para venda agressiva de títulos em mercados pequenos pode lhe dar um bom dinheiro. Ele recruta Donnie (Jonah Hill) e, com um grupo de amigos, a dupla cria a Stratton Oakmont.
Manipulando o mercado e vendendo com meios nem sempre dentro da lei, a empresa prospera, iniciando Jordan e seus companheiros em uma vida de loucuras, drogas e sexo. Seus excessos não passam despercebidos, e ao mesmo tempo que sua vida conjugal com Naomi (Margot Robbie) começa a ceder sob a pressão, sua companhia passa a ser investigada pelo agente do FBI Patrick Denham (Kyle Chandler).
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Vale deixar claro que essa é uma história real: Tudo se passou no fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990, gerando muitas notícias e o livro que também inspirou o título do filme, escrito pelo próprio Belfort (versão nacional pela Editora Planeta do Brasil). No cinema, apesar do caso ter inspirado a produção “O Primeiro Milhão” (2000), é a primeira vez que a história é verdadeiramente contada.
Se bem que é difícil falar em verdade quando palavra-chave aqui é “desconfiar”. O protagonista é o narrador, e a história segue 100% de seu ponto-de-vista, por mais irregular que ele possa ser. Acontece que Jordan leva o termo “narrador não confiável” ao limite. A montagem da trama é refém de sua memória e de seu relato, sempre com um tom confiante, exagerado e egocêntrico.
Às vezes, o que ele conta realmente pode não ser verdade. Em parte porque ele quer nos enganar, em parte porque ele mesmo se enganou, e a graça é descobrir exatamente quando isso acontece. Em um filme sobre negócios ilícitos, não poderíamos esperar algo menos do que também sermos enganados.
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É claro, muito dessa brincadeira fica nas drogas. O trailer não deixa esse aspecto da história tão claro, mas muito da trama é dependente dos narcóticos – Jordan faz pausas para explicar origens e dissertar sobre efeitos, tudo relacionado, claro, à bolsa, aos negócios e às trapaças, e tudo surpreendentemente se encaixa.
(Não espere discursos sobre saúde ou cenas dramáticas de vício. Sim, temos personagens declaradamente viciados, mas esse não é nem de longe o ponto que o enredo busca abordar.)
Conforme Jordan nos leva pela sua história, passamos por cenas em que descaradamente ou discretamente o mundo não é mais o mesmo, que tudo é um exagero ou uma fantasia. Um carro muda de cor com um comando de sua narração, ou uma escada que aumenta o número de degraus quando está vendo sob a influência de drogas são apenas exemplos. A vida é um exagero de grandiosidade.
Se os personagens estão com algum “barato”, nós fazemos parte, seja com a visão fora de foco, uma câmera lenta ou simplesmente um uso inteligente de ângulos de câmera, que constroem as cenas tanto quanto, ou até mais do que a narração.
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Essa questão da visão deturpada do mundo acaba sendo um dos principais temas da produção. Conforme Jordan trapaça, se droga, humilha e engana pessoas em nome de seu próprio sucesso, nós temos plena consciência de que tudo está errado, mas ele nos conquista. Dificilmente concordamos com suas decisões, mas no fim das contas elas são excelentes, divertidíssimas. Nós passamos a enxergar o mundo como ele.
As cenas mais divertidas para o público são grandes sequências complexas de bacanais regados a uísque e cocaína, sempre colocadas quase lado-a-lado às igualmente interessantes montagens de escritórios lotados de corretores enlouquecidos gritando em telefones. Muitas vezes mostrando muito com poucos cortes, nos sentimos em meio à curtição alucinada.
Isso faz sentido, afinal Jordan é nosso amigo, nosso companheiro. Ele conversa com a câmera, com cada um de nós. Ele explica termos de negócios, da bolsa e explica trapaças de um modo didático, tornando emocionante o que, a olhos leigos, são apenas números e dinheiro virtual. E ele sabe que às vezes não vamos acompanhar. Em mais de um momento, o ponto é explicar por cima para chegar ao cerne – o lucro, mesmo que ilegal, e o modo que ele admite isso não é muito diferente de sua estratégia de vendas. Ele nos conquista e nos deixa em suas mãos.
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Não é por nada que as três horas (sim, Scorsese novamente gosta de fazer obras longas) passam rapidamente. Mesmo que saibamos que o fim é inevitável, é difícil não torcer pelo bandido, mesmo que logo na cena anterior ele tenha feito algo que alguns de nós poderiam considerar imperdoável.
Conforme tudo se aproxima do fim, é mais fácil de vermos claramente o que a narração de Jordan não permitia antes, que estávamos encantados com o que não deveríamos aprovar. A história toda tende a nos dizer que o excesso é algo fantástico, que o primeiro lugar é o único que há, e que qualquer meio para alcancá-lo é válido, mas isso lentamente cai por terra e nos vemos em dúvida sobre que verdade confiar. Nos sentimos um pouco como os clientes trapaceados do próprio Jordan – tudo não passou de um jogo para nos vender a lição errada. E isso é fantástico.
Scorsese soube ousar no formato. Além de colocar um protagonista que interfere na narração e fala com a própria câmera, sua narração é sujeita a intervenções de comerciais e fotos – ganhando barras laterais para deixar clara a diferença de formato -, nos lembrando implicitamente da época em que se passa a história. Inclusive, espere uma coleção de cabelos, roupas e estilo típico da época. Referências culturais também não faltam, seja com comerciais, programas de TV e menções de marcas ou detalhes como ouvir em um casamento o sucesso de 1992 de Sir Mix-A-Lot, “Baby Got Back”. Houve também certo preciosismo para tornar tudo especialmente grandioso, com fantásticos retoques digitais imperceptíveis durante a trama.
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Obviamente, o principal talento do elenco é o próprio DiCaprio, conduzindo o filme em todos os sentidos, mas seus colegas não ficam para trás. Atuações memoráveis para personagens memoráveis, incluindo o já mencionado Jonah Hill, mais Margot Robbie (cuja personagem é muito mais interessante do que o trailer sugere) e mesmo secundários como Rob Reiner, que encarna Max, pai de Jordan, ou Matthew McConaughey como Mark, seu primeiro chefe, que lhe ensina nos truques do mercado de ações.
Um crédito duvidoso mas inegável é o talento da equipe para representar efeitos fisiológicos e psicológicos de drogas. Algumas sequências de DiCaprio, em especial, tem potencial para serem lembradas por muito tempo, tanto pelo humor negro quanto pela veracidade.
Sem dúvida, este filme tem o potencial para que DiCaprio agarre seu tão-sonhado Oscar, e mesmo se o prêmio não vingar, a obra será uma favorita de muitos. Mesmo se você não for um lobo desonesto, o filme também tem suas lições sobre como as pessoas funcionam, e provavelmente daqui para frente se tornará material obrigatório para todos os profissionais de marketing, comunicação e vendas.